
Na contemporaneidade, o fazer arquitetônico vai muito além da criação de edifícios ou da materialização de ideias, ele se afirma como um campo multidimensional assumindo papéis mais amplos e complexos. Em contextos marcados por desigualdade, crises ambientais e disputas territoriais, ele se transforma em uma ferramenta de negociação, capaz de mediar interesses entre diferentes atores. Nesse cenário, o arquiteto assume também a função de tradutor cultural, articulador social e, muitas vezes, defensor de direitos coletivos.

Mas como a arquitetura pode, de fato, mediar conflitos e promover transformações em realidades tão desiguais? Em sociedades nas quais a voz das comunidades costuma ser silenciada por lógicas de mercado ou por políticas públicas centralizadoras, a prática arquitetônica precisa ir além do desenho técnico e se posicionar como um campo de disputa simbólica e material.

Este artigo busca refletir sobre tal questão por meio da análise de três experiências no Sul Global, onde arquitetos atuaram como mediadores em processos complexos envolvendo comunidades, empresas privadas, governos e financiadores internacionais. Os casos de SEALAB (Índia), Yasmeen Lari (Paquistão) e Comunal Taller de Arquitectura (México) demonstram que a arquitetura não é apenas um produto, mas um processo social e político capaz de construir pontes entre mundos distintos.
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O SEALAB, escritório baseado em Ahmedabad, Índia, fundado por Anand Sonecha e Mariana Paisana, é conhecido por projetos comunitários que valorizam processos lentos, participativos e atentos à identidade cultural local. Sua trajetória foi recentemente reconhecida na 5ª edição do ArchDaily Next Practices Awards.
Um exemplo emblemático desse papel mediador é a Escola para Crianças Cegas e com Deficiência Visual em Gandhinagar. O projeto teve como objetivo criar um ambiente educacional acessível para alunos de cidades remotas, atendendo também às necessidades dos professores que buscavam oferecer educação de qualidade e oportunidades de integração social. Desde o início, tornou-se evidente que a participação ativa de alunos e professores seria essencial para garantir que o espaço fosse funcional e intuitivo.

Para isso, o escritório precisou reinventar as ferramentas de comunicação e engajamento durante o processo de projeto. Em diferentes estágios, foram realizadas reuniões e oficinas com alunos e professores para envolvê-los diretamente nas decisões sobre a forma e a organização do edifício. Inicialmente, modelos de papelão foram utilizados para permitir que os alunos explorassem o espaço com as mãos, mas logo percebeu-se que essa abordagem era limitada na compreensão dos volumes internos e dos detalhes arquitetônicos.
Como alternativa, foram introduzidos modelos impressos em 3D, que possibilitaram a construção de representações robustas e táteis dos espaços. Essas maquetes incluíam elementos como móveis e figuras humanas, ajudando os alunos a entender a escala e a disposição funcional do prédio. Além disso, foi desenvolvido um código de texturas, sobreposto às plantas e modelos, que diferenciava espaços internos e externos, áreas de circulação e salas de aula, complementado por sinalizações em Braille para identificação de cada ambiente.

Antes da construção, o escritório organizou uma simulação em escala real no terreno, permitindo que administradores, professores e alguns alunos percorressem os espaços e oferecessem feedbacks sobre circulação, percepção espacial e organização. Durante a execução da obra, técnicas construtivas específicas também foram testadas com os alunos, como diferentes texturas de gesso para pisos e paredes, avaliando sua eficácia para orientação e navegação tátil.
Essa abordagem participativa e sensível aos cinco sentidos mostrou-se fundamental para criar um ambiente educacional inclusivo, no qual os usuários pudessem compreender, circular e se apropriar do espaço de forma autônoma. O projeto exemplifica como arquitetura e mediação podem se articular, usando estratégias inovadoras de comunicação e participação para atender às necessidades de comunidades historicamente marginalizadas e garantir que o desenho arquitetônico seja verdadeiramente acessível.

Yasmeen Lari: Arquitetura Humanitária e Autonomia Comunitária
No Paquistão, a arquiteta Yasmeen Lari, primeira mulher a exercer a profissão no país, tem revolucionado a prática arquitetônica com sua abordagem de "arquitetura zero carbono, zero desperdício e zero dependência". Após décadas projetando edifícios corporativos, Lari dedicou-se à atuação social através da Heritage Foundation of Pakistan, respondendo a desastres ambientais e crises humanitárias.
Seu trabalho mais marcante ocorreu após as enchentes devastadoras de 2022, que deixaram milhões de pessoas desabrigadas. Enquanto o governo e empresas privadas propunham soluções industrializadas, caras e distantes da realidade rural, Lari defendeu um modelo baseado na autonomia comunitária. Utilizando bambu, terra e outras técnicas vernaculares, ela desenvolveu protótipos de abrigos elevados, resistentes a enchentes e terremotos.

A mediação ocorreu principalmente na negociação entre doadores internacionais, empresas privadas e comunidades locais. Em vez de aceitar modelos prontos impostos por financiadores, Lari convenceu-os a investir em materiais locais e treinamentos comunitários, reduzindo custos e fortalecendo a economia local. Um elemento central do processo foi a formação dos chamados "empreendedores descalços": moradores treinados para construir casas e ensinar outros membros da comunidade, multiplicando o impacto do projeto. Esse modelo exigiu também diálogo com o governo paquistanês, que inicialmente não reconhecia a validade técnica das construções vernaculares. A Heritage Foundation atuou como mediadora política, pressionando por mudanças regulatórias que legitimassem esses métodos. O resultado foi a construção de mais de 40 mil casas sustentáveis, com impacto ambiental mínimo e forte empoderamento comunitário, especialmente de mulheres.
O trabalho de Lari demonstra como a arquitetura pode inverter a lógica tradicional de dependência, transformando comunidades em protagonistas do processo, ao mesmo tempo em que engaja empresas privadas em práticas mais éticas e sustentáveis.

Comunal Taller de Arquitectura: Resistência Cultural e Políticas Públicas no México
No México, o Comunal Taller de Arquitectura, sediado em Oaxaca, desenvolve projetos que nascem da participação direta das comunidades, respeitando suas tradições culturais e fortalecendo sua autonomia. Um exemplo é a Vivienda en Puebla, concebida em colaboração com moradores da Sierra Norte de Puebla, região marcada por forte identidade indígena e desafios socioeconômicos.

Nesse projeto, a intenção inicial era propor soluções habitacionais que respondessem às necessidades locais, sem impor modelos externos e industrializados. O governo mexicano costuma oferecer programas de habitação baseados em padrões rígidos de construção em concreto e aço, o que frequentemente desconsidera o contexto cultural e econômico das comunidades. O papel do Comunal foi justamente criar uma ponte entre essas exigências formais e os modos de vida tradicionais.
O processo incluiu oficinas participativas, nas quais os moradores mapearam suas necessidades e compartilharam conhecimentos construtivos transmitidos de geração em geração. A partir disso, foram realizadas prototipagens em escala real, permitindo testar soluções e garantir que os materiais e técnicas locais fossem valorizados. Em Puebla, isso se traduziu no uso de madeira, terra e sistemas construtivos tradicionais, reinterpretados de forma a cumprir requisitos técnicos e de segurança.

A construção foi feita em grande parte com mão de obra comunitária, o que reduziu custos e fortaleceu o sentimento de pertencimento. O projeto resultou em habitações de baixo impacto ambiental, adaptadas ao clima local e enraizadas na cultura indígena. Mais do que um conjunto de casas, o processo gerou empoderamento coletivo, incentivando a autonomia das comunidades na transformação de seus espaços.
O caso do Comunal evidencia a arquitetura como ato político: questiona modelos estatais padronizados, promove a diversidade cultural e reafirma o direito das comunidades de participar ativamente da produção de seus territórios.

Convergências e Lições
Apesar de atuarem em contextos distintos — Índia, Paquistão e México —, os três casos mostram pontos de convergência. A prototipagem se consolidou como ferramenta de diálogo entre arquitetos e comunidades; a valorização de materiais e saberes locais reforçou identidade cultural e sustentabilidade; a negociação entre diferentes atores foi decisiva para viabilizar projetos; e a autonomia comunitária emergiu como legado essencial. Em conjunto, essas experiências mostram que a arquitetura pode ser mais do que um serviço técnico: ela pode construir pontes entre mundos diferentes, promovendo inclusão social, preservação cultural e inovação sustentável. No Sul Global, onde as desigualdades e tensões são mais visíveis, essa atuação mediadora se revela não apenas desejável, mas necessária para enfrentar os desafios contemporâneos.

Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Arquitetura sem limites: interdisciplinaridade e novas sinergias. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.















