Arquitetos como mediadores: três experiências de diálogo entre comunidade, governo e empresas no sul global

Na contemporaneidade, o fazer arquitetônico vai muito além da criação de edifícios ou da materialização de ideias, ele se afirma como um campo multidimensional assumindo papéis mais amplos e complexos. Em contextos marcados por desigualdade, crises ambientais e disputas territoriais, ele se transforma em uma ferramenta de negociação, capaz de mediar interesses entre diferentes atores. Nesse cenário, o arquiteto assume também a função de tradutor cultural, articulador social e, muitas vezes, defensor de direitos coletivos.

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Escola para Crianças Cegas e Deficientes Visuais / SEAlab Maquete. Imagem © Dhrupad Shukla

Mas como a arquitetura pode, de fato, mediar conflitos e promover transformações em realidades tão desiguais? Em sociedades nas quais a voz das comunidades costuma ser silenciada por lógicas de mercado ou por políticas públicas centralizadoras, a prática arquitetônica precisa ir além do desenho técnico e se posicionar como um campo de disputa simbólica e material. 

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© Heritage Foundation of Pakistan |Zero Carbon Women Centre on Bamboo Stilts, Moak Sharif, Tando Allahyar, Sindh–2011.

Este artigo busca refletir sobre tal questão por meio da análise de três experiências no Sul Global, onde arquitetos atuaram como mediadores em processos complexos envolvendo comunidades, empresas privadas, governos e financiadores internacionais. Os casos de SEALAB (Índia), Yasmeen Lari (Paquistão) e Comunal Taller de Arquitectura (México) demonstram que a arquitetura não é apenas um produto, mas um processo social e político capaz de construir pontes entre mundos distintos.


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SEALAB: Mediação e Inclusão como Princípios de Projeto

O SEALAB, escritório baseado em Ahmedabad, Índia, fundado por Anand Sonecha e Mariana Paisana, é conhecido por projetos comunitários que valorizam processos lentos, participativos e atentos à identidade cultural local. Sua trajetória foi recentemente reconhecida na 5ª edição do ArchDaily Next Practices Awards.

Um exemplo emblemático desse papel mediador é a Escola para Crianças Cegas e com Deficiência Visual em Gandhinagar. O projeto teve como objetivo criar um ambiente educacional acessível para alunos de cidades remotas, atendendo também às necessidades dos professores que buscavam oferecer educação de qualidade e oportunidades de integração social. Desde o início, tornou-se evidente que a participação ativa de alunos e professores seria essencial para garantir que o espaço fosse funcional e intuitivo.

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Escola para Crianças Cegas e Deficientes Visuais / SEAlab © Dhrupad Shukla

Para isso, o escritório precisou reinventar as ferramentas de comunicação e engajamento durante o processo de projeto. Em diferentes estágios, foram realizadas reuniões e oficinas com alunos e professores para envolvê-los diretamente nas decisões sobre a forma e a organização do edifício. Inicialmente, modelos de papelão foram utilizados para permitir que os alunos explorassem o espaço com as mãos, mas logo percebeu-se que essa abordagem era limitada na compreensão dos volumes internos e dos detalhes arquitetônicos.

Como alternativa, foram introduzidos modelos impressos em 3D, que possibilitaram a construção de representações robustas e táteis dos espaços. Essas maquetes incluíam elementos como móveis e figuras humanas, ajudando os alunos a entender a escala e a disposição funcional do prédio. Além disso, foi desenvolvido um código de texturas, sobreposto às plantas e modelos, que diferenciava espaços internos e externos, áreas de circulação e salas de aula, complementado por sinalizações em Braille para identificação de cada ambiente.

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Escola para Crianças Cegas e Deficientes Visuais / SEAlab Maquete. Imagem © Dhrupad Shukla

Antes da construção, o escritório organizou uma simulação em escala real no terreno, permitindo que administradores, professores e alguns alunos percorressem os espaços e oferecessem feedbacks sobre circulação, percepção espacial e organização. Durante a execução da obra, técnicas construtivas específicas também foram testadas com os alunos, como diferentes texturas de gesso para pisos e paredes, avaliando sua eficácia para orientação e navegação tátil.

Essa abordagem participativa e sensível aos cinco sentidos mostrou-se fundamental para criar um ambiente educacional inclusivo, no qual os usuários pudessem compreender, circular e se apropriar do espaço de forma autônoma. O projeto exemplifica como arquitetura e mediação podem se articular, usando estratégias inovadoras de comunicação e participação para atender às necessidades de comunidades historicamente marginalizadas e garantir que o desenho arquitetônico seja verdadeiramente acessível.

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Escola para Crianças Cegas e Deficientes Visuais / SEAlab Maquete. Imagem © Dhrupad Shukla

Yasmeen Lari: Arquitetura Humanitária e Autonomia Comunitária

No Paquistão, a arquiteta Yasmeen Lari, primeira mulher a exercer a profissão no país, tem revolucionado a prática arquitetônica com sua abordagem de "arquitetura zero carbono, zero desperdício e zero dependência". Após décadas projetando edifícios corporativos, Lari dedicou-se à atuação social através da Heritage Foundation of Pakistan, respondendo a desastres ambientais e crises humanitárias.

Seu trabalho mais marcante ocorreu após as enchentes devastadoras de 2022, que deixaram milhões de pessoas desabrigadas. Enquanto o governo e empresas privadas propunham soluções industrializadas, caras e distantes da realidade rural, Lari defendeu um modelo baseado na autonomia comunitária. Utilizando bambu, terra e outras técnicas vernaculares, ela desenvolveu protótipos de abrigos elevados, resistentes a enchentes e terremotos.

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A mediação ocorreu principalmente na negociação entre doadores internacionais, empresas privadas e comunidades locais. Em vez de aceitar modelos prontos impostos por financiadores, Lari convenceu-os a investir em materiais locais e treinamentos comunitários, reduzindo custos e fortalecendo a economia local. Um elemento central do processo foi a formação dos chamados "empreendedores descalços": moradores treinados para construir casas e ensinar outros membros da comunidade, multiplicando o impacto do projeto. Esse modelo exigiu também diálogo com o governo paquistanês, que inicialmente não reconhecia a validade técnica das construções vernaculares. A Heritage Foundation atuou como mediadora política, pressionando por mudanças regulatórias que legitimassem esses métodos. O resultado foi a construção de mais de 40 mil casas sustentáveis, com impacto ambiental mínimo e forte empoderamento comunitário, especialmente de mulheres.

O trabalho de Lari demonstra como a arquitetura pode inverter a lógica tradicional de dependência, transformando comunidades em protagonistas do processo, ao mesmo tempo em que engaja empresas privadas em práticas mais éticas e sustentáveis.

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Emergency Instant Shelter. Image Courtesy of Heritage Foundation of Pakistan

Comunal Taller de Arquitectura: Resistência Cultural e Políticas Públicas no México

No México, o Comunal Taller de Arquitectura, sediado em Oaxaca, desenvolve projetos que nascem da participação direta das comunidades, respeitando suas tradições culturais e fortalecendo sua autonomia. Um exemplo é a Vivienda en Puebla, concebida em colaboração com moradores da Sierra Norte de Puebla, região marcada por forte identidade indígena e desafios socioeconômicos.

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Residência em Puebla / Comunal Taller de Arquitectura © Onnis Luque

Nesse projeto, a intenção inicial era propor soluções habitacionais que respondessem às necessidades locais, sem impor modelos externos e industrializados. O governo mexicano costuma oferecer programas de habitação baseados em padrões rígidos de construção em concreto e aço, o que frequentemente desconsidera o contexto cultural e econômico das comunidades. O papel do Comunal foi justamente criar uma ponte entre essas exigências formais e os modos de vida tradicionais.

O processo incluiu oficinas participativas, nas quais os moradores mapearam suas necessidades e compartilharam conhecimentos construtivos transmitidos de geração em geração. A partir disso, foram realizadas prototipagens em escala real, permitindo testar soluções e garantir que os materiais e técnicas locais fossem valorizados. Em Puebla, isso se traduziu no uso de madeira, terra e sistemas construtivos tradicionais, reinterpretados de forma a cumprir requisitos técnicos e de segurança.

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Primeira Escola Rural Produtiva / Bachillerato Rural Digital No.186 + Comunal Taller de Arquitectura Cortesía de Comunal

A construção foi feita em grande parte com mão de obra comunitária, o que reduziu custos e fortaleceu o sentimento de pertencimento. O projeto resultou em habitações de baixo impacto ambiental, adaptadas ao clima local e enraizadas na cultura indígena. Mais do que um conjunto de casas, o processo gerou empoderamento coletivo, incentivando a autonomia das comunidades na transformação de seus espaços.

O caso do Comunal evidencia a arquitetura como ato político: questiona modelos estatais padronizados, promove a diversidade cultural e reafirma o direito das comunidades de participar ativamente da produção de seus territórios.

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Primeira Escola Rural Produtiva / Bachillerato Rural Digital No.186 + Comunal Taller de Arquitectura Cortesía de Comunal

Convergências e Lições

Apesar de atuarem em contextos distintos — Índia, Paquistão e México —, os três casos mostram pontos de convergência. A prototipagem se consolidou como ferramenta de diálogo entre arquitetos e comunidades; a valorização de materiais e saberes locais reforçou identidade cultural e sustentabilidade; a negociação entre diferentes atores foi decisiva para viabilizar projetos; e a autonomia comunitária emergiu como legado essencial. Em conjunto, essas experiências mostram que a arquitetura pode ser mais do que um serviço técnico: ela pode construir pontes entre mundos diferentes, promovendo inclusão social, preservação cultural e inovação sustentável. No Sul Global, onde as desigualdades e tensões são mais visíveis, essa atuação mediadora se revela não apenas desejável, mas necessária para enfrentar os desafios contemporâneos.

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Escola para Crianças Cegas e Deficientes Visuais / SEAlab © Aakash Dave

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Arquitetos como mediadores: três experiências de diálogo entre comunidade, governo e empresas no sul global" 13 Out 2025. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1034470/arquitetos-como-mediadores-tres-experiencias-de-dialogo-entre-comunidade-governo-e-empresas-no-sul-global> ISSN 0719-8906

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